Abnegados

O ar era sufocante. 120 metros quadrados para cinco indivíduos. Aquilo era uma prisão, um claustro.

O apartamento da família Mariano ficava no sétimo andar, de  frente a uma praça arborizada. Todas manhãs se ouvia o cantarolar dos passarinhos, e velhinhos sentados nos bancos, com crianças correndo. Tom olhava pela janela, admirando a vista, e salivando, simultaneamente. Não aguentava mais, teria que ter um fim aquele martírio.

Faltava coragem a Bolinha, Eliane e Madruga. Viviam muito gordos e quietos, aceitando aquele ar fúnebre do lar. Somente Bernardo parecia não concordar com a situação. O resto, eram todos uns castrados, bloqueados. Aceitavam se sujeitar a viverem presos naquele local. Não tinham coragem de sair para a rua. Uns covardes.

Logo convenceria Bernardo a  tomar uma direção diferente. Viveriam livres, leves e soltos. Não mais presos. Livres, totalmente livres. Porém, de todos, o único que estava certo de tomar uma atitude era ele, Tom. Somente ele, Tom, seria capaz de tomar o protagonismo. Se ele não agisse, todos continuariam na mesma.

Enfim, chegou o grande dia. A hora que tinha preparado. A glória era certa. Viveria conforme seus instintos, conforme sua natureza. Tom estava resoluto. Sem dúvidas, sem angústias. Abnegado em seu propósito. Faria o que tinha de ser feito.

Olhou apreensivo a cena. Não seria fácil. Corria grandes riscos. Não poderia falhar. Sabia do peso de sua responsabilidade. Certamente, não poderia falhar. Podia perceber o abismo que teria que atravessar, de forma ilesa. Era um desafio e tanto. Mas os riscos valiam a pena. Liberdade! Liberdade! O que não deveria ser feito em nome da liberdade? Qual custo seria alto demais para ser livre? Que obstáculo seria grande o suficiente para impedi-la? Quem se acovardaria diante de seu destino grandioso, por míseros temores?

Tom tomou o grande passo de sua vida. A janela estava aberta. Subiu nos sofá e voou. Voou como nunca antes. Gloriosamente, flutuava no ar. Girava ao sabor dos ventos. Liberdade! Liberdade! Grandiosa liberdade!

Abocanhou um passarinho em sua queda livre. O deglutiu. Não bastasse isso, pisou o gramado da praça. Sentiu a luz do sol a aquecer-lhe os pelos. Rodeavam-no inúmeros desconhecidos. O afagavam, acariciavam-no como prêmio pelo ato grandioso. Onde se ouvira um gato saltar do sétimo andar vivo? Ronronava de satisfação.

Porém… (A vida é cheia de poréns) nunca lhe permitiriam tal heroísmo impunemente. Começou uma gritaria, gente correndo de um lado pro outro. O caos se instaurou, diante da denúncia de um gato preso, em cárcere privado. Que, diante dos horrores, ainda bravamente conseguia fugir da prisão.( Imagine quando descobrissem os outros quatro… Seria um escândalo nacional, anunciado na grande mídia). Veio certos indivíduos e o imobilizaram. Tentou reagir, porém o prenderam com uma coleira. Tentava se desvencilhar daqueles grilhões e não conseguia. Em fúria, tentava ir de um lado para o outro. Até que…

Tragicamente chegaram os seus algozes. Com cara de espanto, diante da falência de seu poder. Podia se ver o quão horrizados estavam diante do ato de heroísmo. Nunca imaginaram uma fuga daquele ambiente opressivo. Subitamente, o levaram- mesmo diante de sua resistência, com arranhões e mordidas- para dentro de sua cela.

Seus companheiros o olhavam com admiração. Como conseguira? Como rompeu o bloqueio? Com um ato tão simples? Embasbacados, lhe olhavam Bolinha, Eliane, Bernardo e Madruga. Incitava-lhes o coração a agirem. A tomarem uma ação diferente para com a vida.

A reação, entretanto, veio com fúria. No mesmo dia, lhe levaram a uma cela especial. Era um lugar mais opressivo, totalmente claro, monocromático. Nesse lugar, estranhíssimo, lhe colocaram numa caixa gradeada. Uma verdadeira solitária. Via seus antigos algozes falando com um novo. Não compreendia nada. Em certo momento, o deixaram sozinho, dentro da sala branca, dentro da caixa gradeada. Se desesperava. Miava sem fim. Seus pelos eriçavam, tentava dar murros na caixa, e o máximo que conseguia era nada. Apenas se movia no chão. As grades eram duras demais para roer. Entrou em desespero, por um período prolongado. Certamente, horas e horas. Até que caiu de exaustão. Adormeceu.

Então, começou sua sessão de tortura. Entrou um ser estranho e o levou dentro da caixa gradeada a outra cela. Antes que começasse a berrar, lhe sopraram um gás venenoso com um aparelho, e caiu inconsciente. Devia ser algo letal, pensava que ali morreria de vez, como uma vítima exemplar de sua atitude subversiva.Todavia, sobreviveu. A dose foi fraca, pensou. Quiseram economizar no veneno. Entretanto, acordou sem se mexer.

Quando acordou, viu que estava imobilizado. Via uma série de apetrechos em seu corpo, o impedindo de se movimentar. E mesmo que quisesse, não conseguia. Seu corpo doía terrivelmente. Viu que tinha sido esquartejado vivo-entre as pernas- quando caíra  adormecido, diante do vapor venenoso. Ao mesmo tempo, sentia uma moleza no corpo, que não conseguia explicar. Começou a miar, fortemente, em protesto. Lhe trouxeram, então, uma nova dose de veneno, agora líquido. Caíra semi-morto de novo.

Acordou novamente, lhe doendo o coração pensando nem ser considerado digno de uma dose de veneno razoável, em que de forma ávara tentavam economizar até em sua morte. Porém, evitava miar, e dar sinal de vida. Quem sabe, não tinha sido uma quantidade baixa de veneno, mas ele resistira bravamente. Melhor ele ser forte, e aguentar até seu corpo se recuperar.

Estranhamente, viu ao seu lado um prato de comida. E boa. Galinha cozida. Via, regularmente, uma moça lhe servir na boca. Não compreendia agora nada. Quem sabe era alguma alma piedosa. Mesmo nos piores lugares, sempre há almas piedosas.

Tentava se manter em silêncio, porém quando começava a miar de novo, surgia um algoz com o líquido mortífero. Caía inconsciente, sem perceber. As doses se respetiram tanto, que então começou a compreender o sentido de tudo aquilo: Queriam lhe matar aos poucos, de forma vil e cruel.

Tom percebera novamente que se enganou; todo aquele martírio era para lhe preparar a ser entregue novamente a seus algozes antigos. Devia ser para amansá-lo, torná-lo dócil diante das injustiças da vida.

De forma bizarra, seus antigos torturadores  entraram na sala chorando, ao mesmo tempo que o acariciavam de forma frenética e descontrolada, com uma voz miada e doce. Não entendia mais nada. Só podia ser fingimento, mais um passo em sua via dolorosa.

Antes de chegar em casa, soltaram-lhe de muitos dos aparelhos imobilizadores. Devia ser os custos, pensara. O local só podia ser um centro de detenções, e devia ter um orçamento limitado. Porém, estava livre daquela masmorra. Melhor um cárcere de 120 metros quadrados superlotado que uma caixa gradeada.

Chegara em casa, e pode presenciar o horror. Viu o corpo de Bernardo velado. À primeira vista, pensou que seria o próximo. Porém, lhe informaram seus companheiros de prisão o que houvera.

Bernardo, bravamente, decidiu seguir os seus passos. Mesmo que tardiamente, decidiu resolutamente lutar pela liberdade. Saltou da janela para capturar outro pássaro voando. De forma idealista, não ponderou os riscos. Afugentou os fantasmas do receio e do medo. E, no seu ato heróico destemido, se espatifou num muro. Calculara mal sua queda.

Porém, o sangue de Bernardo transformou o cenário. Seu ato de heroísmo moveu o mundo. Sua expressão feriu mortalmente o jugo opressivo que lhes pesavam. A partir de então- certamente pelo choque da opinião pública- começaram a ser levados os quatro felinos a caminhadas monitoradas, algemados pelo pescoço, diariamente. Agora, não ficavam restritos 24  horas na cela de 120 metros quadrados; podiam se mover pela praça e redondeza. Apesar de sempre vigiados, controlados, fiscalizados. A coleira lhes lembrava o quanto precisavam ainda lutar contra a tirania. Agora, reforçada, por grades terríveis nas  janelas; roubando-lhes o caminho da fuga. Bernardo, entretanto, exortava-os a todos como um emblema simbólico a continuar lutando.

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